Sempre ouvi dizer, assinando embaixo, que só se deve exercer uma profissão que nos cause total prazer. Trabalhar num ofício repugnante é de causar dó. Trabalha-se contrariado, irritado e por que não dizer: considerá-lo inadequado e entediante.

Invejo e respeito, ao mesmo tempo, o entregador de jornal. Cumpre sua missão, seu itinerário (que não o Itinerário de Pasárgada, consagrado poema de Manuel Bandeira, porque ele não é o amigo do rei.) Faça sol escaldante ou chova canivete.

Já impliquei com ele, o entregador. Verdade que esse era guri, sem o menor vestígio da futura e opcional barba grande e malfeita. Nos dez anos (toda a década de 197O) em que atuei como diretor da sucursal do jornal florianopolitano O Estado, ocorreram episódios como esse:

Já tendo como enfrentar como concorrente o debutante jornal gaúcho, perdoem, leitores, o Jornal de Santa Catarina, recém-falecido, arranjar aqui em Blumenau anúncios e mais difícil ainda colher assinaturas. Claro que amigos do peito ou um pouco distantes deles, mas amigos, enfim, liam, pagando, o jornal todos os dias da semana.

E entre os assinantes constava o João Vieira, que, jornalisticamente, ficou conhecido como Mano Jango. Telefone na sucursal não parava de tocar. Quase cem por cento de assinantes que berravam pelo fato de não terem recebido o jornal naquele dia.

E aí é que o Mano Jango entra na história. Telefonou-me dizendo que na ida à Estação de Ferro Santa Catarina, como chefe de uma determinada seção, dera de olho numa cena insólita: o garotote, entregador de jornal, jogara num terreno baldio um monte de jornais O Estado a ser entregue no bairro Ponta Aguda, onde ele morava. Na realidade, tratava-se de um campo em que as vacas e bois pastavam.

Não leram os ditos por que nunca os homens lhes ensinaram o abc.

Já fui bancário (o Inco), de banqueiros catarinenses (os Miranda, de Itajaí). Quando me mudei para Curitiba para fazer Direito na Universidade Federal, trabalhei no Inco, da rua Monsenhor Celso.

Transferindo-me para o Rio de Janeiro, continuei a labutar nele. Era a garantia para pagar os estudos universitários. Mas por pouco tempo. Estourou (isso já nos idos de 6O) uma greve geral de bancários. Entrei firme na elaboração de faixas e protestos de rua.

Fui chamado pela direção da agência bancária. O sr. Marinho Lins fez-me ver sua decepção em ver o filho de um amigo de infância envolvido no que ele rotulou de atividade subversiva. Prometeu se eu entregasse a cabeça dos líderes da greve, manteria meu emprego. Do contrário, rua.

Claro que disse um sonoro não. Comunicando ao papai o ocorrido, recebi como resposta

 "Agiste bem, meu filho, enfrentaste a arrogância marinha."

Tive três jornais de curta duração: Opinião, Entrevista e Jornal de Pomerode (Pommer Zeitung). Um dia, entregando manu a manu um deles (não lembro qual) em frente ao Teatro Carlos Gomes, vi um ex-aluno saindo do INPS. Ofereci-lhe o jornal, não esperando dele (agora médico): "Ora, que decepção! O meu velho mestre entregando jornais." Ouviu de mim: Faço com orgulho este trabalho. O jornal é meu, portanto entrego-o sem o menor pudor. Tua faculdade pode ter te tornado doutor, mas te tirou uma qualidade essencial: a sensibilidade.

E mais nada foi dito ou feito.