O triste e compassado badalar do sino anuncia que a hora da derradeira despedida está chegando. O silêncio toma conta de todos. A emoção invade a alma. Os olhos transbordando em lágrimas, os lenços úmidos nas mãos, o abraço confortante de quem está ao lado, a melodia fúnebre das excelências, a dor do último adeus. A morte leva a vida em seus braços e a deposita no ventre da terra, como o amado que estende a amante em seu tálamo. O casamento está selado. Antes era a morte cortejando a vida, dois opostos que trocavam olhares nas esquinas da existência, evitando qualquer encontro. Agora são apenas um, pois não há mais olhares, a escuridão ofuscou a luz e a morte abraçou a vida, ocupando todo o seu espaço. Numa simbiose perfeita, ela dorme serenamente no seu leito, reservado apenas para si.

O sino continua chorando suas estrofes enquanto o funeral segue. Em volta ao caixão o padre reza as exéquias recomendando aquela alma a Deus. Adeus! E diz-se uma Ave-Maria pelo próximo dos presentes que se tornará ausente em breve, afinal, todos estamos na fila. Quem será? Quem...? Machado de Assis nos diz o óbvio: de fato, a morte é uma companheira inelutável do homem. Ou a indesejada das gentes - como anuncia Manuel Bandeira. Por ora, resta o luto que preenche o coração dos que ficam. Sim, eis o filho mais nobre deste casamento entre a vida e a morte: o luto. Filho indesejado, diga-se de passagem. No entanto, inevitável. Assim que a morte ocupa seu posto, ela fecunda a vida e dá à luz este filho. E como sua mãe - a morte - não está para cuidá-lo, acabamos por adotá-lo, sem resistências, sem reticências, sem opção. É um filho órfão que se acomoda em nossa casa e demora a crescer, e é inútil querer abortá-lo. Demora a ganhar asas, e não adianta querer jogá-lo do precipício antes. Demora a voar para longe, e não há quem o faça partir antes do tempo.  
Mas há o outro lado da moeda. Existe a necessidade do luto, por respeito, por consternação, por saudade, por amor. Permitam-me o luto no período sensato. Me ajudem não interferindo demais. O telefonema, a flor, a visita, o abraço, sim, mas por favor, não me peçam alegria sempre e sem trégua,  diz Lya Luft em Perdas e Ganhos. Sim. Mesmo que ele seja adotado à força por nós, não podemos negar que tem sua razão de ser. E deve ser vivido, um dia de cada vez. Ainda assim, podemos nos perguntar: O luto se vive? Sim, ele acaba se vivendo. Mas a angústia permanece, já que a fragilidade permanece (A. Comte-Sponville). Não há escolha, diante da morte somos todos frágeis, somos todos iguais. Não há rico, não há pobre, não há intelectual, não há analfabeto. Há o luto, que nos afeta a todos. Mas por quanto tempo? Não sei, é imponderável. 
Visualizam-se dois caminhos: ou acostuma-se a ele e vive-se enlutado pelo resto dos dias; ou se lhe supera, dando margens à vida outra vez. Entre sua inelutável presença e sua humana necessidade, corre de um lado ao outro a dolorosa experiência da perda. A silenciosa presença de uma ausência - parafraseando Charbonneau em Crônicas da solidão. O luto é o recolhimento de nossa alma no silêncio que a morte nos faz habitar. ...E nas ausências se contam estórias que são o mais próximo que as palavras podem chegar da coisa viva - caberia num velório o discurso científico e verdadeiro sobre os processos de decomposição que ali estão ocorrendo? Há certas verdades que são piores que um ultraje. Mas a imaginação voa para fazer ressuscitar palavras de amor, gestos de alegria, manifestações de bondade... Verdades podem ser nada mais que necrológios, mas as estórias são inovações da vida (Rubem Alves). 
E então a vida ressurge. Ninguém morre enquanto está vivo na memória de alguém... e essa morte, que é uma dura realidade para nós, simplesmente não existe para Deus (isso não deve ser um consolo, mas uma centelha de esperança ante a lastimosa dor do infortúnio desencontro). Os mortos não têm o poder de matá-los a si mesmos em nós. Em nossas lembranças nunca deve haver um caixão, no qual ficamos contemplando um corpo sem vida. Em nossas recordações há de ter alguém sempre vivo, que pula, dança, brinca, conta piadas, histórias, que trabalha, estuda, vai à luta todos os dias, nos ensina a viver... No mundo das memórias póstumas não há enterro, não há morte. Só há vida. Só há a saudade, marcada pelo desejo da presença - na luta contra o luto. Há o amor. O amor faz tudo reviver. O amor ressuscita.
Eu sei que o momento não é propício para ironias - perdoem-me os estimados leitores -, mas gostaria de terminar de forma irreverente, utilizando-me do humor requintado de Mário Quintana. Quiçá ele nos ajude a rever, nem que seja ulteriormente, nossa acolhida desta infeliz visitante - a morte -, nosso trato com este bastardo filho - o luto. Fica assim registrado que Nunca se deve deixar um defunto sozinho. Ou, se o fizermos, é recomendável tossir discretamente antes de entrar de novo na sala. Uma noite em que eu estava a sós com uma dessas desconcertantes criaturas, acabei aborrecendo-me (pudera!) e fui beber qualquer coisa no bar mais próximo. Pois nem queira saber... Quando voltei, quando entrei inopinadamente na sala, estava ele sentado no caixão, comendo sofregamente uma das quatro velas que o ladeavam. E só Deus sabe o constrangimento em que nos vimos os dois, os nossos míseros gestos de desculpas e sorrisos amarelos que trocamos...Quem sabe a morte seja mais zombadora da vida do que a vida seja lacrimosa para com a morte.

"Ele não está aqui; ressuscitou" (Lc 24, 6). 

É com essa certeza evangélica que desejamos celebrar a partida do nosso querido padre Roberto. Agradecemos a toda a comunidade tão confortantes e carinhosas manifestações de solidariedade, reflexo do quanto a bondade e a humildade do padre Roberto tocou a vida de quem o conheceu. Não morre aquele que permanece vivo em nossas recordações. Padre Roberto, obrigado por tudo!
 
Chegando ao lugar onde Jesus estava, Maria, vendo-o, prostrou-se a seus pés e lhe disse: Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido [...] 
Jesus chorou.
(Jo 11, 32.35)

Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos carácteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso finado.
    (Machado de Assis)

Fernando Steffens,
 Diácono Igreja Nossa Senhora Imaculada Conceição - Gaspar -SC