Anísio Teixeira e Paulo Freire são duas grandes referências para a educação brasileira. As contribuições que ambos ofereceram para o tema da democratização do acesso à educação permanecem atuais e são reconhecidas no Brasil e no exterior. Ambos escreveram densas páginas explicando que a construção do raciocínio analítico é fruto da possibilidade de olhar o mesmo problema com mais de uma perspectiva.
Seus escritos articularam conceitos para se refletir sobre a distância entre os ideais proclamados e aquilo que é efetivamente feito. Aliás, na opinião de Anísio Teixeira o Brasil está estruturado na distância entre o que se fala e o que se faz. Dessa fortuna crítica pode-se herdar uma concepção radicalmente democrática a respeito dos processos de avaliação, à medida que os dois autores propõem que mesmo as situações organizadas para aferir conhecimento devem ser concebidas como oportunidades para aprender. O ENEM estava se consolidando como um dispositivo democratizante de acesso ao ensino superior e a densidade de suas provas oferecia instrumentos para que o raciocínio analítico predominasse sobre o linear.
A participação no exame resultava sempre num processo em que a experiência do candidato, tanto intelectual quanto a experiência de vida, tornava-se relevante para organizar a maneira de analisar as questões e, consequentemente, o modo de responder. Estou propositalmente conjugando os verbos no passado porque gestos recentes do Ministério da Educação dão sinais de enfraquecimento das políticas públicas de educação. O ENEM corre o risco de deixar de ser essa instância de democratização do acesso ao ensino superior, e já não é mais o caminho para a certificação de jovens e adultos com escolarização tardia. As novas regras do ENEM estão sendo divulgadas. Porém, em relação ao processo de certificação de jovens e adultos, o exame foi reorganizado para apresentar-se com trinta questões de múltipla escolha por área de conhecimento, mais a redação. A elaboração do ENEM estava acumulando experiências não somente interdisciplinares, mas também intermodalidades. Nos termos de Anísio Teixeira e de Paulo Freire é simplesmente um desperdício de experiência abrir mão de ajustar o que sempre é necessário para optar por um permanente recomeçar. A segunda contradição é também bastante preocupante. Para entendê-la é necessário formular uma questão. Se o ENEM está deixando de ser um instrumento de democratização de todas as certificações estaria correndo o risco de deixar de ser, ele mesmo, um instrumento democratizante para passar a ser um gigantesco vestibular nacional? Se a resposta à questão for positiva, e cada vez mais muitos educadores temem que sim, temos que rapidamente defender o ENEM para que não seja desfigurado e perca, com essa desfiguração, seus fundamentos democratizantes. Esse exame nacional de ensino médio não pode se tornar mais um exemplo da distância entre o que se propõe e o que se faz. Tampouco pode se tornar exemplo de nosso interminável desperdício de experiências acumuladas.Deve sempre ser considerado como questão de Estado, não de governo.
Gilberto Giusepone,
Presidente da Fundação PoliSaber
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