A situação do Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Gaspar, é um estudo de caso emblemático sobre os desafios da gestão fiscal na administração pública brasileira. O que à primeira vista parece um simples problema contábil – o município pagando as despesas de uma entidade privada – é, na verdade, um complexo jogo de xadrez que envolve a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a Constituição Federal e a preservação de um serviço essencial. A decisão de como classificar essa despesa pode levar o administrador público a um caminho fiscalmente seguro ou a um grave problema legal. A seguir, uma análise dos cenários possíveis para essa despesa, com as consequências de cada um.

1. O Cenário da Intervenção - O Gasto de Custeio que Protege o Município

Este é o cenário em que a prefeitura de Gaspar se encontra no momento e, mesmo que esteja pagando os salários e outras despesas diretamente, esse gasto não se soma ao limite de despesa com pessoal para fins da LRF.

A intervenção não transforma os funcionários do hospital em servidores públicos municipais. O ato é uma medida de caráter excepcional e provisório, que não cria vínculo empregatício direto com a prefeitura, pois isso exigiria a realização de concurso público. O município atua como um “curador” ou “fiscal” da gestão, com o objetivo de garantir que o serviço de saúde não seja interrompido, devido ao iminente risco à vida e à saúde da população.

A despesa com o pagamento dos salários e demais custos operacionais, embora saia do caixa da prefeitura, é classificada como uma “Outra Despesa Corrente” ou de custeio. Ela se refere à manutenção de um serviço, e não ao pagamento de servidores do quadro efetivo, conforme a definição legal da LRF. Em casos análogos, a jurisprudência, como a do Tribunal Superior do Trabalho, já pacificou o entendimento de que a intervenção não torna o ente público responsável pelas dívidas trabalhistas ou previdenciárias como um empregador direto.

2. O Cenário da Concessão a uma Organização Social - A Solução Estratégica e Segura

Este é o caminho apontado pelo Decreto nº 12.559/2025 de Gaspar, que visa a desapropriação para transferir a propriedade dos bens do hospital para o patrimônio público, o que, por si só, é uma despesa de capital, não de pessoal. O segundo passo é viabilizar a CONCESSÃO DA GESTÃO HOSPITALAR A UMA ENTIDADE ESPECIALIZADA, como uma Organização Social (OS).

Se for isto: A despesa do município será um contrato de gestão, e não uma folha de pagamento de pessoal. A entidade de gestão, por sua vez, será a responsável por contratar e pagar os funcionários, sob um regime diferente.

A consequência: Os Tribunais de Contas e o Supremo Tribunal Federal (STF) têm o entendimento pacificado de que os contratos de gestão com OS não se confundem com a terceirização de mão de obra e, portanto, o gasto não entra nos limites de pessoal da LRF. Este modelo é a forma de o município arcar com o serviço do hospital de forma segura, sem violar a Constituição Federal (que exige concurso público para a contratação de servidores) e sem comprometer sua saúde fiscal.

3. O Cenário da Terceirização para Substituição - O Risco de Romper a Lei

Este seria o caminho perigoso, caso o município resolvesse contratar uma empresa terceirizada para fornecer a mão de obra.

Se for isto: O gestor estaria utilizando a terceirização para substituir funcionários que, por sua natureza, exercem atividades-fim do serviço público de saúde. A LRF, nesse caso, é explícita.

A consequência é esta: A Lei de Responsabilidade Fiscal, em seu Artigo 18, §1º, exige que os valores de contratos de terceirização que se referem à substituição de servidores e empregados públicos sejam somados aos gastos de pessoal. O Tribunal de Contas do Paraná (TCE-PR), por exemplo, já determinou a contabilização de gastos com serviços médicos terceirizados nas despesas de pessoal. Se o município fizesse isso, correria sério risco de estourar seu limite de 60% da Receita Corrente Líquida e sofrer as sanções, como a suspensão de repasses e a proibição de novas nomeações.

4. O Cenário da Municipalização da Folha - O Caminho Proibido

Este é o único cenário onde a despesa com os funcionários do hospital seria, sem dúvida, contabilizada nos limites de gasto com pessoal do município, com consequências fiscais e jurídicas gravíssimas.

Se for isto: o município de Gaspar, por meio de uma lei ou ato administrativo, cria cargos públicos para absorver e formalizar um vínculo direto com os atuais funcionários do hospital, transformando-os em servidores ou empregados públicos.

A consequência é esta: A municipalização da folha de pagamento, sem a realização de um concurso público para a contratação desses profissionais, é um ato totalmente inconstitucional. O artigo 37 da Constituição Federal é claro ao exigir o concurso público para o provimento de cargos e empregos na administração direta e indireta. O Supremo Tribunal Federal (STF) já reiterou que a “transposição, absorção ou aproveitamento” de empregados públicos sem a devida aprovação em concurso é inconstitucional.

Além da inconstitucionalidade, o ato geraria um aumento súbito e insustentável na despesa de pessoal, fazendo com que o município estourasse o seu limite de 60% da Receita Corrente Líquida (RCL), o que desencadearia sanções severas. O gestor que ordenasse a absorção da folha de pagamento enfrentaria as mais severas sanções previstas na LRF e na Lei de Crimes Fiscais, incluindo a perda do mandato, multas pessoais e até mesmo a pena de reclusão de um a quatro anos.

A estratégia de Gaspar é um movimento calculado para garantir a continuidade de um serviço vital sem comprometer sua saúde fiscal, navegando entre as brechas legais e a jurisprudência para evitar o cenário mais perigoso: a municipalização da folha de pagamento.

Aurélio Marcos de Souza
Advogado

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