O retrato de uma sociedade que ainda não se desfez de preconceitos

O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, adquiriu uma nova dimensão em 2024, sendo reconhecido oficialmente como feriado nacional. Mais que uma data comemorativa, trata-se de um marco para lembrar a luta histórica da população negra no Brasil, desde os tempos da escravidão até os desafios atuais enfrentados no combate ao racismo e na promoção da igualdade.

Instituída para homenagear Zumbi dos Palmares, ícone da resistência negra, a data também destaca as contribuições culturais, sociais e econômicas da população negra ao longo da história brasileira. Contudo, os números mostram que há muito o que avançar.

A população negra no Brasil: força e desafios

Conforme o Censo 2022 do IBGE, os negros — somando pretos e pardos — representam 55,5% da população brasileira, ou 112,7 milhões de pessoas em um total de 212,6 milhões. Desses, 20,6 milhões se autodeclaram pretos (10,2%) e 92,1 milhões se consideram pardos (45,3%). Em Santa Catarina, embora tradicionalmente reconhecido pela maioria branca, os números indicam um crescimento da população negra, que já alcança 23,3% da população de todo o estado. Em Gaspar, embora ainda não haja dados exatos e recentes, percebe-se uma diversidade crescente, reflexo das migrações internas e internacionais.

Entretanto, as disparidades raciais persistem em diversos âmbitos, como renda, acesso à educação e mercado de trabalho. Dados do IBGE mostram que, em média, negros recebem apenas 56,2% do rendimento dos brancos e são a maioria entre os desempregados. Além disso, eles têm menos acesso à educação superior, ocupando apenas 38% das vagas em universidades públicas.

Racismo cotidiano: uma realidade alarmante

Uma pesquisa recente do Instituto Locomotiva em parceria com a QuestionPro, realizada em novembro de 2024, evidencia a persistência do racismo no Brasil. O levantamento, com abrangência nacional, revelou que 7 em cada 10 pessoas negras já sofreram constrangimento devido à discriminação racial. As situações relatadas incluem:

- 39% evitam correr para pegar transporte público, temendo serem vistos como suspeitos.
- 46% evitam entrar em lojas de marca para não enfrentar olhares preconceituosos.
- 36% deixam de pedir informações a policiais, e 32% não vão a agências bancárias por medo de humilhações.
- 73% relataram que episódios de preconceito afetam sua saúde mental.

Outro dado relevante é que 68% dos entrevistados afirmaram conhecer alguém que sofreu discriminação racial. A pesquisa também revelou que 36% dos brancos reconhecem ter sido preconceituosos, mesmo que sem intenção.

Afroconsciência Honório: valorizando a cultura negra em Gaspar

• Fotos do evento Afroconsciência Honório (Fotos: Daniel Nogueira/Jornal Metas)

O evento Afroconsciência Honório, realizado no dia 19 de novembro na Escola de Educação Básica Professor Honório Miranda, trouxe um panorama amplo sobre a importância da cultura afro-brasileira e da conscientização antirracista. A iniciativa, que envolveu apresentações culturais, rodas de samba, capoeira e poesia, foi liderada pelas professoras Thaisa Quadros e Lindair Lanz Favero, com a participação de alunos e convidados.

Thaisa Quadros, professora na Honório Miranda e com 21 anos de experiência, compartilhou sua trajetória de aprendizado sobre a temática racial. Inspirada por uma colega negra, Thaisa reconheceu a necessidade de aprofundar seus conhecimentos em afrodescendência e reparação histórica. “Como mulher branca, percebi que precisava estudar mais para transmitir um conteúdo que fosse não só informativo, mas transformador. O combate ao racismo passa pela educação, e eventos como este são ferramentas fundamentais para moldar uma sociedade mais justa e menos preconceituosa”, afirmou.

Já Lindair Lanz Favero, com 14 anos de atuação na Honório Miranda, celebrou o impacto do evento. “Esta foi a primeira vez que realizamos algo tão grandioso, englobando todos os períodos. A mudança no calendário, que oficializou o Dia da Consciência Negra como feriado nacional, foi um incentivo. Apesar disso, ainda temos muito a trabalhar, pois casos de racismo continuam ocorrendo, entre alunos e até entre professores. Nosso papel é reforçar que racismo é crime e que o conhecimento é o antídoto para o preconceito”, declarou.

Eduardo da Silva Abílio Bezerra, de 17 anos, estudante do segundo ano do ensino médio, atuou como cerimonialista no evento e destacou o impacto da iniciativa na escola. “Foi uma oportunidade para muitos alunos conhecerem histórias e culturas que não tinham acesso. Para nós, alunos negros, foi uma forma de nos sentirmos representados e mais confiantes. Além disso, o evento reforçou a importância de reconhecer as lutas e dores do povo negro”, afirmou.

Natural de Alagoas, terra de Zumbi dos Palmares, Eduardo também refletiu sobre a relevância do feriado. “Carregar a história de Zumbi é um orgulho. Ele é um símbolo nacional de resistência, e o Dia da Consciência Negra não é apenas um momento de celebração, mas de reflexão e aprendizado”.

O instrutor de capoeira Márcio Emerson da Silva Ramos, de 27 anos, trouxe sua experiência à escola, destacando o papel transformador da capoeira na juventude. Natural de Belém do Pará, Márcio vive em Gaspar há um ano e meio e dá aulas gratuitas em duas escolas municipais. “A capoeira me salvou de um caminho errado e hoje é minha forma de ajudar jovens a escolherem o caminho certo. Além de promover saúde e disciplina, é uma maneira de preservar a cultura negra e mostrar que a igualdade é possível”, afirmou.

Márcio reforçou a ligação intrínseca entre a capoeira e o movimento negro. “Ela nasceu da resistência dos nossos ancestrais e é uma forma de manter viva essa história. Mais que isso, a capoeira é de todos e prova que a cor da pele não nos diferencia”.

A presença negra no esporte

• Orlando Saulo dos Anjos, carinhosamente conhecido como (Fotos: Divulgação)

Orlando Saulo dos Anjos, carinhosamente conhecido como “Nego Lando”, deixou uma marca profunda no bairro Figueira e no município de Gaspar. Nascido em 25 de maio de 1938, estudou no colégio Honório Miranda, onde ganhou o apelido que o acompanhou por toda a vida. Foi casado com Geni Alba de Oliveira dos Anjos, com quem construiu uma grande família de oito filhos, 18 netos e dois bisnetos.

Apaixonado por futebol, Nego Lando brilhou no Clube Atlético Tupi, onde jogou como ponta-direita e conquistou títulos marcantes, como o bicampeonato da Liga Blumenauense em 1956 e 1957. Conhecido pela camisa 7, sua atuação em campo era admirada por todos. Mesmo após encerrar sua carreira esportiva em 1969, permaneceu fiel ao Tupi, sendo uma presença constante na arquibancada, torcendo por seu time do coração.

Além do futebol, Orlando demonstrava seu amor por Gaspar através da poesia, eternizando em versos sua admiração pela cidade. Ele trabalhou em importantes empresas da região, como Hering, Metalúrgica Turbina e Ceval Alimentos S/A-, contribuindo ativamente para o desenvolvimento local.

• Orlando Saulo dos Anjos, carinhosamente conhecido como "Nego Lando" (Fotos: Divulgação)

Seu legado foi eternizado em 16 de dezembro de 2023, com a inauguração da Praça Orlando Saulo dos Anjos, no bairro Figueira. Parte do Programa Lazer em Foco, o espaço é uma homenagem à sua história e uma forma de manter viva a memória de um homem que uniu gerações com suas paixões e valores. Orlando Saulo dos Anjos faleceu em 2011.

Representatividade na política

• Mara, primeira mulher negra a se tornar vereadora em Gaspar (Fotos: Divulgação)

A representatividade política também é uma questão fundamental. Mara Lúcia Xavier da Costa dos Santos, a Mara da Saúde, é a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Câmara de Vereadores de Gaspar. Eleita em 2020 e reeleita em 2024, Mara defende que as cotas raciais foram fundamentais para sua entrada na política. “As pessoas precisam entender que o que é difícil para uma pessoa branca é duas vezes mais difícil para os negros. Eu tenho convicção que só fui aceita no partido por ser negra, para preencher a cota. As cotas me deram a oportunidade de estar aqui e mostrar que somos capazes”, destacou.

Nos últimos dois anos, Mara organizou sessões solenes na Câmara em homenagem ao Dia da Consciência Negra. Em 2024, a cerimônia, que aconrecerá nesta quinta-feira (21), às 19h, no plenário, em sessão aberto ao público, vai homenagear 25 empreendedores negros de diferentes áreas, como saúde, música, estética e indústria. “É preciso que Gaspar compreenda o valor da cultura africana e sua contribuição para a identidade brasileira”, afirmou a vereadora.

Projetos resgatam a história da presença negra no município

Gaspar possui mais projetos que visam enaltecer a importância da presença negra em nossa região. A professora Angela Maria Custódio faz parte do Movimento Afro Raízes do Vale e por meio do Movimento promoveu dois projetos recentes no município: Pérola Negra e Pretas Memórias. “Com o Pérola Negra, nosso objetivo é contar a história de mulheres negras que contribuem para a história de Gaspar desde a década de 40 a 50. Vamos fazer isso através de um desfile bem legal. Já com o Pretas Memórias, queremos resgatar a história e memórias das pessoas negras que vivem há mais tempo em Gaspar, por meio de entrevistas e registrar isso de forma escrita e audiovisual, para disponibilizar esses registros na internet e no arquivo histórico da cidade”, explica Angela. Ambos os projetos foram viabilizados com recursos da lei complementar n° 195/2022. Lei Paulo Gustavo.

Confira algumas fotos do evento Afroconsciência Honório: