Carta de resposta a uma pergunta de Deus
22/04/2020 09:51
Adão, onde estás?
(Gn 3, 9)
O que há de errado no mundo? Eu.
(Chesterton)
O homem está perdido!
A frase acima não é uma sentença apontando o resultado final de uma equação que, dita de outro modo, assim se apresentaria: o homem não tem mais solução, está perdido - para sempre. Não é o caso de colocá-lo num caixão e enterrá-lo, uma vez que seu destino foi anunciado: a perdição, logo, a morte. Não pode ser este o derradeiro final daquele que é a coroa da criação. Isto denunciaria um fracasso de Deus e Deus não é um fracassado. A história prova isso. Até pode o homem fracassar, mas ele não é um fracasso. O homem vivo é a glória de Deus, teologiza Santo Irineu.
Porém, o homem está perdido.
Onde estás? não é uma pergunta que resulte de uma brincadeira de esconde-esconde como se Deus tivesse desistido de procurá-lo e, então, gritasse em tom chateado, anunciando o fim da diversão: quer aparecer apareça, eu não vou mais te procurar! A indagação esconde, dentro de si mesma, outra questão muito mais profunda: o que fizeste? E o que Adão fez foi se esconder da presença de Deus. Ora, sendo onisciente e onipresente, o Criador não tem como não saber onde está sua criatura. Ouvida ao pé da letra, a interrogação divina se mostra ridícula. Numa mistura de hermenêutica e de humor, a tradição rabínica afirma que esta é talvez a única frase inútil da Bíblia - explica Tolentino em Nenhum caminho será longo. Por isso, onde estás? toca o mais profundo da consciência de Adão e se reveste, de certo modo, com uma moralidade ética subjetiva, enquanto Adão representa cada um de nós, e uma moralidade ética objetiva, ao passo que também evoca a humanidade num todo. Os rabinos, porém, extraem daqui uma rica interpretação espiritual. Só nós podemos dizer onde nós estamos - ensinam-nos eles -, Deus não nos persegue, mas amigavelmente espera que sejamos nós a dizer-lhe isso, explica Tolentino.
E onde estamos?
Estamos dentro de uma tensão histórica que se mostra única. Estamos em tempos de instabilidade. Estamos tocando o limiar de uma nova fase gestada na Modernidade (século XVI), parida nas Revoluções dos séculos XVIII e XIX, vinda à luz no "prometéico" século XX e tornada imaturamente adulta nos albores deste milênio. Sendo um adulto imaturo, então, de fato, somos ainda crianças. Estamos construindo uma nova humanidade, cuja personalidade aponta futuros traços psicológicos não muito animadores. Que maturidade adulta podemos esperar de uma criança que adolesceu imaturamente? Estamos em tempos de crise institucional, seja ela qual for. Estamos no
momento líquido da história. Estamos perdidos, sem norte, sem bússola, à deriva no mar da contingência humana.
Por que nos perdemos?
Porque, como Adão, ao nos esquivarmos do olhar cuidadoso de Deus, perdemo-lo de vista e colocamos em seu lugar outro deus, senão vários, todos falsos e sem capacidade de nos guiarem. Se não olharmos para Deus não saberemos para onde caminhar, pois ele é a meta a ser alcançada. Contudo, se mantivermos os olhos fixos Nele, não nos perderemos. Poderemos até fracassar, mas levantaremos outra vez o olhar e reencontraremos o norte. Isto porque seu olhar que penetra o nosso é misericordioso, é apascentador, é cheio de ternura.
Adão, onde estás? - pergunta Deus.
Estou tentando reencontrar teu olhar, Senhor! - respondo eu.