Miopia social

Por

Uma das características mais marcantes da sociedade contemporânea é o individualismo. Na vida privada ou mesmo no convívio social mais amplo, estamos, como se diz, "cada um no seu quadrado". Quanto menos interferência, melhor. Excetuando poucos abnegados que se dedicam à coletividade, a grande maioria de nós pensa e age em favor dos nossos próprios círculos familiares restritos. Costumamos nos mexer apenas em uma determinada situação: quando algum de nossos preciosos direitos é frontalmente questionado. Aí, meus amigos, até os mais pacatos viram ativistas.

Essa miopia, que nos impede de enxergar longe, de ver o coletivo, tem sido a patologia que nos levou a quadros críticos de saúde financeira e desequilíbrio social. Pensamos e agimos em torno dos nossos próprios umbigos. Acontece que estamos vivendo uma crise política e econômica que expôs até para quem não quer ver as mazelas que nos levaram a essa situação. Décadas de falta de planejamento, de excesso de benesses, de privilégios sem cabimento _ e claro _ de muita corrupção e mau uso do recurso público _ nos trouxeram até aqui. Chegamos ao limite. Estamos assistindo a uma quebradeira em série dos Estados e a uma falência generalizada de estruturas e serviços públicos.

Ainda assim, a resistência às mudanças estruturantes continua enorme. "Resolvam os problemas, mas sem mexer na minha zona de conforto", é o pensamento geral. Acontece que não há mais como adiar as mudanças. E elas não serão fáceis. Se o que é preciso for feito, veremos muita reclamação _ especialmente por parte daqueles que cobram soluções, mas não incentivam reformas.

Por mais populista que soe, precisamos promover mudanças que favoreçam, majoritariamente, os mais pobres. São eles que dependem mais diretamente dos serviços públicos. São eles os primeiros a sofrer as consequências dos desmandos políticos e seus consequentes efeitos econômicos. São eles os menos vistos pelos míopes sociais, aqueles que se intitulam cidadãos de bem, mas não enxergam o mundo além de seu florido quintal.

Para mudar de verdade - e para melhor - a vida dessas pessoas é preciso mexer em questões abrangentes e vitais para a nossa virada social e econômica: reforma da previdência, regulamentação do direito de greve, benefícios para os servidores públicos, desvinculações de receitas. Isso é o mínimo para que se consiga garantir direitos antes de não conseguir cumpri-los.

O novo Brasil que deve nascer desse parto complicado não comporta mais a manutenção de velhas práticas. Governos que existem quase somente para dar conta da folha de pagamento não têm razão de existir _ especialmente agora, que acabou o dinheiro.

Existe um monstro à solta nesse ambiente difuso e que por hora está inerte, mas atento, e que poderá aflorar logo como levante social. Não temos a dimensão do que está por vir. Mas é certo que a sociedade não vai tolerar por tanto tempo hospitais fechados com os órgãos e Poderes funcionando normalmente.

Se você está no grupo do "não pisem no meu calo", prepare-se para se sentir incomodado. Nossas opções são quebrar ou mudar. A oportunidade de transformar para melhor talvez não nos seja dada mais adiante. A hora é agora. Se você é um míope social, providencie seus óculos de realidade.