O "Escudo da Impunidade": a PEC da Blindagem e o Vale Tudo
Na calada da noite, enquanto a atenção da audiência se concentrava na novela global, 344 deputados federais protagonizaram o verdadeiro “Vale Tudo”. Um passo vergonhoso na direção da impunidade, que deixaria ruborizado o mais conservador dos governantes. A aprovação da “PEC da Blindagem” – um nome que já carrega a própria ironia – é um soco no estômago dos brasileiros e um claro sinal de que a maioria dos deputados está mais preocupado em proteger o seu umbigo do que representar o povo.
Não se trata de um mero ajuste na lei, mas de um verdadeiro retrocesso na Constituição Federal. A proposta, que ressuscita o voto secreto, típico de regimes ditatoriais, exige o aval prévio dos próprios parlamentares para que possam ser investigados e processados. Uma tentativa bizarra de criar um Judiciário paralelo. Em vez de se submeterem à justiça, como qualquer mortal, nossos parlamentares querem se julgar. É a lógica do “nós por nós”, que fortalece a impunidade e os privilégios que tanto se combateu no país.
Os argumentos a favor da PEC, como a suposta “perseguição política” por parte do Judiciário, são frágeis, oportunistas e revanchistas. Não podemos permitir que o medo de enfrentar as consequências de seus próprios atos se torne justificativa para anular o sistema de freios e contrapesos que sustenta a nossa democracia. O foro privilegiado já é uma aberração em democracias modernas. A PEC da Blindagem simplesmente o transforma em uma licença para cometer crimes com a certeza de se estar acima das leis. Para os deputados que votaram a favor, “pau que bate em Chico, não bate em Francisco.”
A inclusão dos presidentes de partidos políticos na lista de beneficiários do foro no Supremo Tribunal Federal (STF) é a cereja do bolo da sacanagem. Por que líderes partidários, que não possuem mandato popular direto, deveriam ter esse tratamento especial? A resposta é clara: a PEC não defende a “atividade parlamentar”, mas interesses de uma elite política que se recusa a ser responsabilizada por seus atos.
A aprovação em duas votações por ampla maioria, com votos de deputados da oposição e da própria base governista, mostra a união de uma classe política que, quando se trata de se proteger, deixa as diferenças de lado, assim como ignora as leis e se veste de incoerência.
Agora, a bola está com o Senado. Cabe aos senadores, que também são representantes do povo, barrar a PEC. Mas, será que o teatro do absurdo vai apenas mudar de endereço? Se depender do presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Otto Alencar, a PEC não avança. Todavia, em política até vaca voa.
O povo brasileiro precisa estar atento e pressionar para que essa manobra não prospere. Caso contrário, a PEC da Blindagem será lembrada como o dia em que o Congresso Nacional trocou o voto de confiança do eleitor por um escudo para seus próprios privilégios.
A PEC também nos soa como uma retaliação ao Poder Judiciário, especialmente ao Supremo Tribunal Federal (STF) que recentemente condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete réus por tentativa de golpe de estado. Ao aprovarem a mudança, os parlamentares enviam uma mensagem clara ao Judiciário: “os nossos não serão intocáveis, mas o acesso à Justiça não será tão simples”. A medida é um “escudo”, mas não contra perseguições injustas, e sim contra investigações e processos que desagradam a classe política, independente de culpa ou não. A fragilidade das instituições democráticas fica exposta quando a preocupação com a impunidade se sobrepõe ao dever de representação.
O cenário somente pode ser alterado com uma ampla mobilização popular, porém, a polarização política no Brasil dificulta a reação da sociedade. O que, em tese, seria uma pauta de consenso - a luta contra a impunidade - acaba sendo guinada para o campo da disputa política, e novamente vamos estar diante do “nós e eles”. Nesse cenário, a reação da sociedade civil organizada, das associações de juristas e de veículos de imprensa independentes se torna ainda mais crucial. Sem uma voz forte e unificada vinda das ruas, o Senado pode se sentir à vontade para seguir a tendência corporativista da Câmara, aprovando a PEC com o argumento de que a “sociedade não se manifestou contrária”.
A falta de uma mobilização popular, porém, não significa que a sociedade concorde com a medida, mas sim que a energia da indignação popular está sendo canalizada para outras pautas políticas, ou até mesmo exaurida pela polarização e repetição de decisões que historicamente privilegiam os congressistas.
A PEC da Blindagem abre ainda um precedente perigoso. Se os deputados conseguem se autoblindar de investigações e processos, o próximo passo pode ser anistiar aqueles que atacaram as instituições democráticas, mesmo que isso signifique minar os alicerces da democracia.
A esperança é que o Brasil ainda tem instituições que podem reagir. O Judiciário, mesmo sob ataque, ainda é um pilar da democracia. A imprensa, ainda que fragmentada, cumpre um papel importante na denúncia de abusos. E a sociedade, apesar de dividida, tem capacidade de se mobilizar. Portanto, as ameaças à democracia não vêm apenas de tanques e quartéis, mas também de emendas constitucionais como a da PEC da Blindagem. O que está em jogo é a estrutura de poder, a igualdade perante a lei, o estado democrático de direito e a estabilidade do país.