A "foca" e o professor Gervásio

Por Chris Moraes

Por REDAÇÃO JM

Chris, no começo da profissão, com o eterno amigo Gervásio

Eu era muito jovem, vinte e poucos anos. Eu foca, novata no jornalismo, com breves passagens em assessoria de imprensa, produção de entrevistas ao vivo para rádio e uma experiência em TV, que acabou com o meu romantismo sobre esse ambiente de reportagem.

Quando conheci o Gervásio, ele era editor de Variedades do Santa e eu, sua repórter. No início parecia que ele me avaliava o tempo todo, não necessariamente com aprovação. Mas essa impressão se esvaneceu rapidamente e nos tornamos melhores amigos. Daqueles que a gente guarda do lado esquerdo do peito (como dizia o Milton Nascimento).

Eram tempos muito, muito diferentes, analógicos. Máquinas de escrever, telex teclando e pontuando o tempo sozinho e telefones tocando ininterruptamente. A gente errava o texto nas laudas de papel jornal, amassava e jogava fora, começando tudo outra vez. Além do Gê me orientar sobre as reportagens e abordagens das fontes, ele corrigia o meu português, ensinava macetes e sempre tinha uma piada ou uma inside information para contar sobre alguém ou alguma coisa. Adorava inventar trocadilhos com os nomes de pessoas. Sorria com os olhos.

Olhos estes bem azuis, que brilhavam quando algo lhe provocava alguma emoção.
- Ô carioca, tens certeza que vais fazer uma matéria questionando o quê o fulano de tal afirmou? Você sabe que vai cutucar a onça com vara curta?
Quando eu respondia sorrindo que sim, ele dizia:
- Então pode fazer que eu te dou cobertura. Mas saiba que ele vai vir com tudo contra você.
E ria, se divertindo com a tempestade que se armava pela frente. Eram muitas as eminências pardas e ególatras em Blumenau e região. Principalmente nas artes, política e na música.

Gervásio era o homossexual mais macho que já conheci na vida. Espirituoso, perspicaz, intelectual, leitor voraz e tinha uma queda por bossa-nova, por cinema, pelas grandes cantoras de antigamente, como a Maysa. Como todo jornalista do século passado (e deste, acredito), bebia muito. Não dispensava uma cerveja, nem a alegria líquida obtida no boteco da esquina, nas suas mais variadas formas, durante as tardes de fechamento do jornal.

Nos divertíamos muito, trabalhando. Ele me dava liberdade, com as rédeas sempre esticadas. O universo da cultura, a literatura, o teatro, as artes plásticas, ele dominava como ninguém. Ganhávamos um salário de fome fazendo aquilo que amávamos. Mas até hoje tenho saudades daquele tempo e do convívio com ele.

O advento do "com puta dor", como ele dizia, e a chegada de uma horda de gaúchos em ônibus para ocupar nossos lugares na redação, amorteceu sua vontade de trabalhar em jornalismo diário.

Como homossexual assumido numa cidade de interior, obviamente ele sofria preconceito, deboches e perseguição. Do editor-chefe inclusive. Mas sabia se fazer respeitar, inclusive pelas centenas de alunos de português que formou nas escolas públicas.

O verão ele sempre passava na casa dos amigos em Florianópolis. Curtia muito praia e lembrava com saudosismo da época que morara em Copacabana, no Rio de Janeiro.

Mas era Catarina raiz. Amava a natureza exuberante dessas terras e foi quem me revelou, em tom de segredo super mega confidencial, que havia uma célula nazista por esses recantos. Em plenos anos 1990...Não era novidade: tinha me deparado com umas suásticas em casas na Vila Itoupava. Depois, numa reportagem sobre um livro de jazz, o autor, um senhorzinho, veio na redação me cobrar que eu havia escrito errado: ele tinha lutado contra os aliados na 2a. Guerra.

Quando foi que te perdi? Não sei ao certo. Quem sabe o Alzheimer foi implacável? Não tenho certeza. Só sei que sua aversão à tecnologia e a distância contribuíram bastante. Gervásio Luz foi um amigo verdadeiro e o melhor mentor que eu tive ou poderia ter tido no jornalismo.

As tardes que passamos ouvindo vinil, em sua sala, onde sempre fui muito bem acolhida, permanecem em minha memória. Sua ausência deixa um vácuo incrível que, tenho certeza, nunca será preenchido nem em Blumenau, no Vale do Itajaí e nem em mim.

 

DA REDAÇÃO: O jornalista, escritor e professor Gervásio Tessaleno Luz faleceu na madrugada da última quarta-feira, dia 17. Natural de Rio do Sul, Gervásio tinha forte ligação com Blumenau, onde lecionou em instituições como os colégios Pedro II, Santo Antônio, do qual falava com orgulho da Academia Mont’Alverne, e na FURB. Além de educador, escreveu obras reconhecidas, como Máximas do Barão de Itapuí e Rio que passa em nossas vidas. Gervásio foi colunista do Jornal Metas por mais de 10 anos.