Eu, a folha e os semideuses
A realidade é dos domínios do impreciso!
Estava diante da folha branca - sim ainda escrevo nela antes de chegar ao computador - quando observei um velho livro sobre deuses e semideuses criados em nossa história humana. Eis o milagre e os pecados recriados para que os humanos aprendam sobre uma realidade que se sobrepõe aos limites dos mortais.
Pensava naquele momento em escândalos, corrupção e discursos explicativos sobre o que não se explica. Lembrava de ditados caros aos humanos, como lobos não comem lobos quando vejo deputados corruptos presidindo CPIs que vasculham a vida de outros deputados corruptos.
E relacionei assim ambas. As mitologias de muitas civilizações criam seres intocáveis que só permitem que certos humanos os representem diante dos mortais usando de palavras rebuscadas e de uma retórica invejável. Somos convencidos de suas qualidades e nos justificam suas maldades com palavras doces, recheadas de imagens bonitas aos que acreditam e terríveis aos descrentes. Eles, os seres elevados, pairam sobre nossas vidas e lhes é dado o direito a mudar os destinos e punir aos pecadores.
Sim, a realidade não é do domínio dos ditames sagrados ou de caminhos suaves. A realidade é do domínio do impreciso quando digo que a raiz dessa nossa excessiva confiança nos deuses e semideuses está na constituição de nossa cultura. Acreditamos que existe a verdade e o falso. Procuramos por isso diariamente em meio ao caos.
Queremos a verdade. O fato é que depende do dia, da hora e, até mesmo, do governo que está hoje. No sentido mais ligeiro, procuramos informações. Essas nos são passadas em mensagens rápidas que são imediatamente reproduzidas em redes sociais. Instalava a "verdade". Ou como diria o velho ministro nazista: "uma mentira dita várias vezes, vira uma verdade". O discurso pode mudar conforme a ocasião.
Políticos - aqui aproximados de seres mitológicos em seus intocáveis reinos - que outrora foram os corruptos da vez agridem os corruptos do momento. Quem é ouvido? Aquele que tem vez e voz nessa cultura que não pode martirizar cérebros com temas profundos. Basta um boato, uma frase, uma chamada no jornal e pimba: escândalo instalado.
Assusto com tantas coisas que observo. Mas assusto muito com o crescente conservadorismo que cresce dia após dia. Articulistas de revistas semanais defendendo pontos de vista que lembram teorias raciais do século XIX, deputados com amplo apoio popular agredindo mulheres, homossexuais e outras crenças que não a sua, senadores que defendem prisão a crianças e por aí vai. Por sua vez, a grande imprensa nacional vasculha imundices alheias para manter o Ibope em alta.
Quer escândalos maiores? Jovens de um país indo às ruas para defenderem corruptos de ontem? Estudantes usando palavras de ordem pedindo volta de militares? Famílias com suas crianças no colo agredindo quem veste essa ou aquela cor associada a esse ou aquele partido político? Donas de casa de classes média-alta reclamando dos direitos trabalhistas que impedem a contratação de uma empregada no seu lar?
Enquanto isso, os semideuses pairam sobre bolsos vazios os seus carros oficiais e usam da retórica para justificar seus privilégios. Ocupam tribunas para agredir minorias e impor crenças. Abrem contas no exterior enquanto mentes do país são ocupadas com escândalos dos corruptos de hoje. Demarcam posições relaxando com os seus enquanto agridem inimigos políticos. Quer escândalos maiores?
A democracia - essa velha e obesa senhora - está doente desde o nascimento.
Não é ruim que as gerações privilegiadas, após o final dos governos militares no país, saiam de suas casas para criticar a situação política do país. Não mesmo. O que é preocupante é que associem suas reivindicações com políticos e partidos que o fazem com intenções conservadoras e autoritárias e se valendo da curta memória da população. E lá estou eu com a folha coberta de palavras, relembrando de semideuses - um tanto humanos um tanto sacralizados - em suas privilegiadas posições sociais. Eles padecem de mesquinharias, raivas, orgulhos e são ávidos por mais poderes. Aos mortais quero dizer, sem hesitar, que a realidade é imprecisa. Muitas vezes, os belos discursos podem recriar nosso senso de realidade. Ative o bom senso sempre.