Depois da crise, veio o consumo

Episódio do barbeiro está superado, e garapeiros vendem mais

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Em junho de 2005, era impossível saber se os comerciantes de caldo de cana poderiam um dia recuperar os prejuízos de quase quatro meses de proibição da venda do produto em Santa Catarina. A medida foi determinada pela Vigilância Epidemiológica do estado, com o aval do Ministério da Saúde, depois que três pessoas morreram pela ingestão de caldo de cana contaminado pelas fezes do barbeiro, inseto que transmite o mal de Chagas. As notícias negativas que tomaram conta da mídia nacional ajudaram a derrubar as vendas da bebida mesmo depois da sua liberação para o consumo. Os donos dos estabelecimentos reclamam que muito se noticiou, na época, sobre a proibição, mas que depois de liberado o comércio, a mídia simplesmente ignorou a informação. Uma comissão chegou a ir até o Governo do Estado para pedir uma campanha de incentivo a volta do consumo da bebida, mas não encontrou eco. 
Com o apoio ou não, o fato é que os comerciantes de caldo de cana comemoram o crescimento do consumo de 2005 pra cá. “Nunca vendi tanto caldo de cana como nos últimos dois anos”, revela Márcio Spengler (foto ao lado), do Parada Nota 10, um dos mais antigos pontos da SC-470, a Rodovia Jorge Lacerda, que também poderia se chamar “Rodovia das Garapeiras” por causa da grande quantidade de estabelecimentos que oferecem o suco da cana. Em um trecho de pouco mais de 1.200 metros, no bairro Poço Grande, cinco estabelecimentos disputam a preferência do consumidor. Com o calor dos últimos meses, as vendas estão tão açucaradas quanto a mais antiga bebida dos gasparenses. Spengler chega a vender 400 caldos num único dia. “O movimento é bom o ano todo, a diferença é que no verão os carros vêm com quatro ou até cinco pessoas, enquanto no inverno, é uma pessoa por veículo que está de passagem pela região”, explica Márcio.
As enormes placas anunciando o produto, visitas a uma distância considerável, é o apelo visual. O caldo gelado é servido ao natural, misturado ao limão ou ao abacaxi. O sistema de rodízio foi abandonado por alguns estabelecimentos. Hoje, o cliente pode consumir 500ml (um copo e ½) pagando, em média, R$ 2,00.
As amigas Elenice Veiga e Cláudia Ganzo, de Florianópolis, tornaram obrigatória a parada para saborear o caldo de cana quando estão na região. Elenice diz que gostava mais quando a bebida era servida no sistema de rodízio, mas no fim das contas acabou sendo melhor para a sua saúde, já que é portadora de diabetes (doença provocada pela deficiência de produção e/ou ação da insulina no organismo). Ela gosta da bebida com limão, enquanto Cláudia acrescenta à sua preferência o caldo misturado ao suco de abacaxi.
Elenice esteve recentemente na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, e experimentou o caldo de cana nordestino. “Não é tão bom como o daqui, o sabor é diferente”, compara. As amigas se queixam da falta de mais produtos coloniais da região nos quiosques. “O açúcar mascavo, o pão caseiro e a cuca alemã”, relaciona Cláudia. Se não tem esses quitutes, o popular pastel acaba sendo o principal acompanhamento do suco.
Durante a proibição da venda do caldo de cana, os comerciantes buscaram alternativas para não fecharem as portas, e o pastel feito na hora já é o segundo produto mais vendido nas lanchonetes da Jorge Lacerda. Felipe Schmitt, filho do proprietário do Point Bacana, afirma que, no seu caso, o pastel já é o produto com mais saída. “Para cada caldo de cana, vendo três pasteis”, revela o comerciante. O estabelecimento oferece 30 sabores primários de pasteis, que se misturados a outros chegam a quase 200. Felipe  diz que esta já é a melhor temporada de verão dos últimos sete anos. Seis pessoas da família e outros quatro empregados são necessários para garantir o bom atendimento no Point Bacana.

Coco
Quem também anda rindo à toa com o bom movimento deste verão na Jorge Lacerda são os comerciantes de coco verde. José Carlos Francisco, o popular Carlinhos Ezequiel, que desde 1976 vende e distribui o produto para estabelecimentos do Vale do Itajaí e litoral, diz que as vendas estão ótimas e o consumo consistente. “Uma das melhores temporadas de verão dos últimos anos”, avalia.
Ele lembra que o clima tem ajudado bastante o turismo e, por consequência as vendas de todo o tipo de produto relacionado a verão. O coco vem dos estados da Bahia, Paraíba e, principalmente, Rio Grande do Norte.

Comerciantes adotam medidas mais rígidas de higiene
Se existem males que vem para o bem, o comércio de caldo de cana é um exemplo de sucesso “pós-tragédia de Chagas”. O episódio de 2005 serviu de alerta, e da lavoura ao produto final o cuidado com a higiene ficou muito maior. “Os clientes passaram a procurar os locais mais higienizados, por isso o que tinha de local sujo fechou, principalmente na BR-101 onde ocorreu a contaminação”, observa Márcio. Segundo ele, os comerciantes de Gaspar nunca tiveram problemas com a higiene na manipulação do produto, só adotaram procedimentos mais rigorosos. No Parada 10, a cana colhida na propriedade é armazenada num freezer. Além disso, Márcio não aplica nenhum  agrotóxico direto na lavoura.
O comerciante admite que comprar a matéria-prima, ao invés de plantá-la, reduziria o custo, mas a sua preocupação é com a qualidade final. “O produto de fornecedores também é bom, mas prefiro plantar porque escolho só o ‘filé’ da cana para fazer o suco”, justifica. Selecionar o ´filé´ significa abrir mão de mais de 50% da lavoura. O produto não aproveitado para o caldo é transformado em cachaça, melado, açúcar mascavo, rapadura e até alimento para o gado.
Há quase 30 anos no negócio, Márcio conhece a cana boa só no olhar. “Pra suco precisa ser a mais madura, plantada em maior espaçamento entre um colmo e outro e que teve maior exposição ao sol”. O resultado é um suco claro, quase amarelado, mais adocicado e que precisa ser consumido na hora, caso contrário perde rapidamente a propriedade clarificante e o sabor.

Coisas da Roça perdeu a boa clientela da Bunge
Nem tudo são flores no comércio de caldo de cana na Jorge Lacerda. No pequeno quiosque Coisas da Roça, a proprietária, Ambrosina Zancanella (foto ao lado), admite que aumentou o consumo do produto, mas de uns cinco anos pra cá ela viu ir embora a sua maior clientela: os empregados da Bunge Alimentos. Há 18 anos no mercado, Ambrosina conta que chegou a ter 90 empregados da empresa como clientes assíduos. “Eles consumiam para pagar no final do mês, hoje não tem nenhum, e raramente aparece alguém de lá”, relata a comerciante. A Bunge, localizada em frente ao Coisas da Roça, instalou um quiosque (que não vende caldo de cana) dentro das suas instalações e o restaurante Questão de Gosto, no Centro de Divulgação Ambiental e de Lazer da empresa, ambos terceirizados. Tudo do lado de lá da rodovia, o que deu mais segurança às pessoas que preferem não encarar a perigosa travessia. Ambrosina comercializa caldo de cana e doces e salgados industrializados. “Não dá para fazer pastel ou lanche porque trabalho sozinha”, justifica a comerciante que hoje conta os dias para a aposentadoria.

“Contaminação
foi um fato isolado”
Um pequeno inseto, medindo não mais do que 3cm, que atende pelo nome popular de barbeiro (Triatoma infestans), pôs em alerta a vigilância sanitária no Vale do Itajaí e Litoral de Santa Catarina. A notícia da morte de três pessoas por meio da ingestão e caldo de cana contaminado em Penha, Litoral do Estado, distante mais de 50km de Gaspar, pegou de surpresa autoridades públicas e comerciantes. Durante quase quatro meses o consumo da bebida foi proibido no Estado. Em alguns estabelecimentos, as máquinas de moer cana chegaram a ser lacradas. 
Até hoje, os comerciantes afirmam que o episódio foi um mal entendido, um fato isolado, mas que acabou tendo grande repercussão na mídia. “Foi um caso isolado, mal esclarecido”, diz Felipe Schmitt.  Ele lembra que a cana não é o ambiente próprio para o desenvolvimento do barbeiro. “É um inseto que se alimenta de sangue”, acrescenta.  As informações desencontradas na mídia nacional (falava-se em 50 mil pessoas contaminadas) quase acabaram com um dos mais antigos comércios de bebida natural. A Vigilância Epidemiológica do Estado registrou 167 casos suspeitos, mas apenas 27 foram confirmados, sendo que três deles evoluíram para a morte.  Hoje, cinco anos depois do episódio ainda existe gente que toda vez que vai a uma das garapeiras ainda têm curiosidade de saber se ainda existe risco de contaminação pela doença de Chagas.

Pinoco’s Cana investe em tecnologia
Se depender da Pinoco´s Cana, o barbeiro nunca mais vai aparecer por aqui. A empresa é a maior distribuidora de cana para suco em Santa Catarina. É também representante comercial da Vencedora Maqtron, que vende e faz manutenção de moendas industriais em todo o Estado. Embora a cana contaminada no Litoral catarinense não tenha saído dos canaviais da Pinoco´s, o sinal de alerta se acendeu e a empresa adotou uma série de procedimentos de higienização e sanitização. Só assim pode crescer mais e atingir, inclusive, o mercado externo. “Foi uma mal que veio para o bem”, diz Marcos Schmitt, filho do proprietário da Pinoco’s, José Alberto Schmitt.
Entre as medidas adotadas estão as do uso de embalagens para acondicionar a cana, câmara fria que mantém o produto conservado por até 36 dias e um caminhão com carroceria térmica. “Somos os únicos a adotar estes procedimentos”, afirma Marcos. Ele só lamenta que o mercado informal continue atuando com venda a preços mais baixos, porém com qualidade inferior à cana da Pinoco´s.
A empresa abastece mais de 200 garapeiras do Vale, Litoral até Joaçaba, no meio-oeste. “Nesta época do ano, o consumo mais do que dobra, colhemos cana todo o dia para não deixar faltar”, revela Marcos. Ele calcula que a empresa tenha mais de 1 milhão de pés da cana plantados. A colheita é artesanal, isto é, usa-se o “velho” facão para o corte. Uma lavoura pode render até 18 cortes. A produtividade varia entre 80 e 100 toneladas por hectare. Segundo Marcus. 70% da produção se destina a caldo de cana, o restante é vendido para fabricação de cachaça, melado, açúcar mascavo e outros subprodutos.